A criação do seu cargo, há cerca de ano e meio, levantou muita controvérsia por a lei o ter colocado na dependência directa do primeiro-ministro. Falou-se em governamentalização da segurança interna. Fala muito com José Sócrates?
Não. Mesmo muito pouco. Neste ano e meio de mandato que levo cumprido encontrámo-nos duas vezes em dois conselhos superiores de segurança interna e, fortuitamente, numa ou outra comemoração.
Em ano e meio, nunca falou com ele a sós?
Não. As competências de tutela do cargo foram delegadas no ministro da Administração Interna e, nessa medida, é com o ministro da Administração Interna que tenho de colocar as questões. Também não ocorreu nenhuma circunstância de tal gravidade que tivesse de colocar directamente ao primeiro-ministro.
Sentiu-se alguma vez condicionado pelo Governo nas suas decisões?
Nenhuma vez. Eu exerci funções de director da Polícia Judiciária, foi o primeiro cargo que exerci fora da magistratura, no tempo em que era primeiro-ministro o professor Cavaco Silva. E é uma coisa de que me recordo: nessa altura, enquanto director da Polícia Judiciária, nunca sofri qualquer espécie de pressão no sentido de conduzir as coisas desta ou daquela maneira.
Quais foram as maiores dificuldades que o seu cargo lhe colocou durante este ano e meio?
Fundamentalmente, foi a tentativa de mudar uma mentalidade que está instalada e que compartimenta muito a linha de actuação das diversas forças de segurança. Criar uma mentalidade de cooperação e coordenação não é fácil, é um trabalho que tem sido desenvolvido não só em termos daquela parte técnica que irá permitir a interoperabilidade dos diversos sistemas de operações mas na realidade do dia-a-dia, na cooperação que se estabelece no dia-a-dia.
Pela resistência das diversas forças de segurança a perderem o controlo sobre aquilo que consideravam serem os seus pelouros?
Nós temos um bocadinho essa ideia, dividimos muito o País em pequenos quintais. A mentalidade de minifúndio está bastante instalada neste país e é necessário que as pessoas, pelo menos quando entramos em campos da administração pública e da tutela do interesse público, potencializem ao máximo os recursos que estão disponíveis. E essa potencialização dos recursos passa pela instalação de uma mentalidade cooperante.
Ano e meio depois, pode dizer-se que os comandantes das diferentes forças aceitam melhor as ordens do juiz-conselheiro Mário Mendes?
Aceitam pelo menos as directrizes que vou estabelecendo, não propriamente ordens, porque legalmente não as posso dar. Mas aquilo que vai sendo estabelecido, falamos frequentemente a nível do Gabinete Coordenador de Segurança, estabelecemos exactamente estratégias comuns e as posições têm sido bem aceites.
Quando assumiu este cargo, defendeu uma tutela única para as polícias. Isso é um primeiro passo para uma polícia única em Portugal?
Não. É um passo importante exactamente naquilo que estou a dizer, na administração dos meios. Até perante a actual conjuntura económica e financeira, os recursos do Estado são escassos e têm de ser geridos de uma maneira tendente a optimizá-los. E essa optimização dos recursos passa, entre outras coisas, por haver uma gestão única dos meios.
Mas uma polícia única não?
Eu sou contra uma polícia única. Sou a favor daquilo que é considerado e que historicamente está consagrado no nosso país como um sistema dual, portanto, a existência de uma polícia civil e a existência de uma forma de segurança de natureza militarizada. Esta é uma construção típica dos países do Sul da Europa, um modelo muito francês adoptado também pelos espanhóis, pelos italianos e historicamente adoptado por nós. Quando falo em polícia única, estou a falar na questão de saber se faz ou não sentido a junção na mesma força e na mesma tutela da Polícia de Segurança Pública e da Polícia Judiciária. E esse cenário não o afasto, pelo seguinte: historicamente, a Polícia Judiciária nasce no pós-guerra, nos anos 50, como uma polícia directamente ligada ao Ministério Público. O Ministério Público tinha um braço armado, que era a Polícia Judiciária, os próprios magistrados do Ministério Público tinham poderes de Polícia Judiciária. Eu lembro-me: quando entrei para a magistratura do Ministério Público, em 1973, era o representante da Polícia Judiciária na comarca onde exercia funções. Simultaneamente, as chefias da Polícia Judiciária, a nível daquilo que hoje são os coordenadores, eram magistrados do Ministério Público. Os directores ou eram juízes ou eram magistrados do Ministério Público. Chegou a haver uma altura em que uma brigada investigava, o inspector-chefe da brigada acusava e chegava-se ao ponto de o director da polícia ter poderes de instrução criminal e decidir as medidas de coacção. Era tudo dentro da casa.
Mas hoje a magistratura e a polícia estão separadas.
Não há nada mais fora do Estado de direito, julgo eu, e das garantias dos cidadãos, do que isto. Hoje está separado!
Defende uma tutela única para as três polícias ou uma tutela única e duas polícias, uma militarizada e uma civil? Ou seja, PSP e PJ juntas?
Neste momento, a solução de uma tutela única ou mesmo a solução da existência de um cargo idêntico ao meu, mas com alguns poderes de tutela efectiva, que não tem, permitiria - e eu salientei isso no meu discurso de posse - preservar a história de cada uma das instituições e manter a tradição destes três corpos de polícia, não sendo necessária a junção de duas polícias numa só. Ao contrário do que algumas pessoas pensam, a preservação da situação actual é mais consentânea com uma tutela única ou com um cargo que exerça essa tutela de charneira do que um sistema igual àquele que temos hoje.
Há menos de dois meses, e a propósito da partilha de informação com os espanhóis sobre terrorismo e crime organizado, o director da Polícia Judiciária, Almeida Rodrigues, foi duro a desvalorizar a unidade de cooperação policial criada por si. Ou seja, até para saber quem leva a informação aos espanhóis há uma certa desconfiança ainda instalada. Há ainda um longo caminho a percorrer? Como é que interpreta esta atitude da Polícia Judiciária?
Eu suponho que poderá ter havido um equívoco da parte dele, essa é uma questão que está esclarecida. Esse grupo que sai do memorando de cooperação entre Portugal e Espanha não é de forma nenhuma um grupo institucionalizado. É um grupo com uma geometria variável que reunirá com os espanhóis com uma formação que será de elementos da polícia com competência para tratar das matérias que vão ser objecto de conversação com os espanhóis.
A Polícia Judiciária olhava para esta unidade como tendo acesso a informação, e o senhor juiz-conselheiro tendo acesso a informação que não poderia ter, portanto, não faria sentido existir esta unidade.
É todo um equívoco, nem sequer assisto às reuniões! Não assisto porque acho que não devo assistir, profissionais da polícia estão muito mais à vontade a falar entre si do que se estiver uma qualquer tutela, seja eu, seja outra qualquer. Normalmente, quando se passa às reuniões operativas ficam aqueles que têm de tratar dos assuntos. E se é um assunto que está na competência da Polícia Judiciária, pois irá um representante da PJ que o senhor director designará. Agora, se for uma situação que interesse a mais do que um órgão de polícia criminal, pois irão representantes desse órgão. Há aqui mais uma vez um equívoco em relação à matéria de cooperação: a matéria de cooperação, estabelecendo-se no campo da investigação, isto é, quando há um inquérito pendente em Portugal irmos falar deste inquérito com espanhóis, isto significa que terão de ir as pessoas que são competentes para tratar do nosso inquérito falar com as pessoas que são competentes para transmitir a informação que nós pretendemos. Isso é uma questão mais vasta que se coloca no campo, por exemplo, da prevenção. Se vamos falar com os espanhóis, voltando ao terrorismo, por exemplo, sobre os novos modus operandi da ETA, é uma realidade que interessa a todos.
Mudou alguma coisa na organização do nosso sistema de segurança interna desde que se confirmou a existência de operações da ETA em Portugal?
Há um reforço óbvio de atenção em relação a essa situação. Isso passa até exactamente por isto que está a acontecer, um diálogo quase permanente com os espanhóis.
O terrorismo é uma ameaça real para os portugueses?
É uma ameaça real para todo o mundo. Nós não estamos imunes a que ocorra aqui qualquer acto dessa natureza.
Que outros tipos de crime organizado o preocupam, para além do terrorismo?
Mantém-se muita preocupação relativamente ao tráfico de droga, continuamos a ter muita atenção aos movimentos de tráfico e à permanente alteração das rotas desse tráfico.
Passa muito por Portugal, a caminho da Europa?
Passa, direi que de uma forma suficientemente grave. Tanto em Portugal, como pela Espanha, pela Holanda. Passa de uma forma que eu considero que é suficientemente grave para exigir de nós uma atenção muito especial. Há um outro crime a que nós temos de estar muito atentos, que é a questão ligada à imigração ilegal e ao tráfico de pessoas. As rotas do tráfico de droga começaram com a entrada a fazer-se por Espanha, pela costa sul de Espanha, nos anos 70, 80. Com a intensificação do controlo por parte dos espanhóis, as rotas desviaram em parte para a costa portuguesa, o que está hoje a suceder em Espanha com alguns fenómenos.
Não só no Sul como no Norte, da Galiza para o Norte de Portugal.
Exacto. Mas aí não se põe tanto este problema que estou a colocar, porque é trânsito vindo do sul, que é o de tráfico de pessoas e de imigração ilegal. Temos de estar atentos, pode começar a ocorrer também em Portugal.
Há informação nesse sentido, de que as rotas de tráfico de pessoas se preparam para fazer um desvio para as nossas costas, que são mais vulneráveis?
Informação propriamente não há. Há análise e há esse cenário como um cenário possível.
No relatório de segurança interna de 2009 foi feita pela primeira vez uma referência aos chamados bairros de risco. Que prevenção é feita nesses bairros?
Em primeiro lugar, e antes de tudo, tem de haver uma prevenção de natureza social.
Tem de haver - e há?
Talvez não haja suficientemente. Há uma preocupação social, uma preocupação educacional, uma preocupação em cuidados de saúde. Há todo um conjunto de políticas públicas que têm necessariamente de estar sempre a montante da intervenção do sistema policial. O sistema policial não é solução para nada, é a última…
E, no país em que vive, teme que a necessidade de gastar menos dinheiro possa ser um handicap a essa prevenção de que fala?
Pode ser, eu reconheci-o no ano passado. Quando foi publicado o Relatório Anual de Segurança Interna relativo ao ano de 2008, em que houve aquela subida de criminalidade, muita gente falou de o ano de crise de 2009 poder vir a acentuar aquela tendência crescente. Eu aí entendi que não, porque, em primeiro lugar, não há uma relação directa entre situação económica e crime. Em segundo lugar, porque entendo que enquanto o Estado tiver capacidade para oferecer algumas medidas compensatórias a situação mantém-se mais calma. Agora, nós este ano estamos num ano difícil, toda a gente o reconhece e já nem sequer ninguém esconde, provavelmente há um conjunto de prestações sociais que vão sofrer cortes. Eu não direi que isto vá dar necessariamente um aumento de criminalidade, mas vai com certeza dar um aumento de alguma perturbação social.
E essa eventualidade está analisada? Há esquemas de segurança previstos para um eventual agravamento da tensão social no nosso país?
Estamos a trabalhar no sentido de estabelecer alguns planos de contingência para algumas situações que possam ocorrer.
Está a estudar o caso da Grécia? As perturbações sociais que lá estão a decorrer estão a ser estudadas pelo seu gabinete?
No meu gabinete não, mas neste momento há grupos de estudo que estão a analisar esse sistema e que nos estão a manter acompanhados sobre essa situação.
Já estão definidas ameaças emergentes para este ano? De que grupos é que é expectável uma maior radicalização? Fala-se já nos camionistas, porque já assistimos há uns anos a um problema de ordem pública por causa da intervenção dos camionistas. As polícias estão preparadas para enfrentar possíveis alterações de ordem pública como aquelas que já aconteceram?
Não vou referir particularmente nenhuma situação, mas é óbvio que nessa matéria de perturbação social há sempre grupos de risco: grupos de tutela de interesses profissionais que tomam atitudes mais radicais, grupos colocados em determinadas franjas ideológicas - caso dos radicais, libertários - e grupos sociais de risco. É a tal questão que me colocou, algumas pessoas que residem em bairros de risco e potencialmente constituem um risco de alguma perturbação social. Isso não é novo - o movimento dessas pessoas é permanentemente acompanhado, pelos sistemas de informações das polícias e pelas avaliações que são feitas pelos próprios serviços de informações de segurança.
O general Leonel de Carvalho, que pode ser considerado o seu antecessor no cargo, embora com competências diferentes, fez há pouco tempo críticas duras à nova Lei de Execução de Penas e afirmou que Portugal estava a tornar-se num paraíso para criminosos. Que comentário lhe merecem estas afirmações?
Não sei o que é que o senhor general emitiu, não tinha visto sequer. É uma novidade para mim essa informação.
Ele estava sobretudo a referir-se à possibilidade de um condenado poder usufruir de um regime aberto ao fim do cumprimento de um quarto da sua pena.
Sim, abstractamente pode. Mas eu não tenho uma visão tão crítica dessa nova Lei de Execução de Penas. É óbvio que isto dá alguns poderes que aparentemente podem ser excessivos à administração penitenciária. De qualquer modo, os actos da administração penitenciária estão sujeitos - a lei prevê-o - a uma tutela jurisdicional. Portanto, a administração penitenciária não pode decidir pelo seu livre arbítrio, tem um controlo judiciário. Mas caímos num erro muito grande quando relacionamos directamente a questão das penas e da administração penitenciária com situações de paraíso dos criminosos.
Acha portanto que em 2008 a entrada em vigor do Código do Processo Penal, que também libertou alguns presos preventivos, não teve nada a ver com a criminalidade que existia nessa altura?
Com certeza que teve alguma coisa a ver - agora, que não foi causa única também não foi. Mas é diferente, o sistema retributivo da pena e o sistema da pena em termos de prevenção criminal são aspectos completamente diferentes. Teremos de chegar à conclusão de que em países que têm sistemas extremamente radicais - como é o caso dos EUA: um homicida está no mínimo sujeito a uma pena de prisão perpétua, com facilidade entrará na parte da pena de morte nos Estados que ainda a mantêm - não haveria ou haveria poucos homicídios. Não é isso que está demonstrado. Essa segunda questão: é óbvio que acarretou a libertação quase ao mesmo tempo de grande número de pessoas que são potencialmente delinquentes. Eu não estabeleço uma relação absoluta de causa e efeito, mas que algum contributo deu, com certeza que sim.
Mas essa expressão, de eventual paraíso de criminosos, não compartilha essas preocupações?
Não. Acho que, apesar de tudo, nos mantemos como um país tranquilo, embora não possamos viver com esta ideia permanentemente.
Debate de temas sobre a Policia Judiciária, investigação criminal, prática judiciária e temas de direito. Se quiser enviar artigos: invescriminal@gmail.com
domingo, 9 de maio de 2010
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