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quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Pontos em várias letras

Mais um artigo via mail:

Agradeço ao colega que escreveu o artigo do L.T. que assim deu-me a motivação que faltava para tecer uns comentários que andam há muito atravessados, e que dizem respeito ao que são direitos, regalias e abusos.

Começo por dizer que é ténue a linha que separa os direitos das regalias. Na verdade, ambos significam exactamente o mesmo, sendo comummente entendido que os direitos são algo concedido por consensual merecimento, e as regalias, estas com carácter mais pejorativo, revestem-se, de alguma forma, de uma mercê injustificada e sem razão aparente. Têm portanto ambas as palavras a mesma acepção, variando a sua utilização conforme a perspectiva de quem analisa o benefício concedido.

Tenho a impressão que o que aqui muito se tem falado é de abusos, que correspondem àquele tipo de compensações que não encontram motivo na Lei, ou que se fazem passar por regalias mas que nem assim têm justificação.

Neste ponto, importa referir que o pessoal de investigação criminal tem uma jornada de trabalho semelhante à restante função pública, mas realiza constantemente serviço fora do horário normal que não é convenientemente pago (conforme reconhecido recentemente pelo Conselho Europeu). Assim, e mesmo que não integrados em unidades ditas “operacionais”, é tarefa da quase totalidade dos investigadores criminais a realização de piquetes de 24 horas, prevenções ou acções pontuais de combate à criminalidade, levando a que praticamente ninguém trabalhe somente 35 horas por semana, uma vez que se pratica o “esquecimento” da compensação temporal das horas de trabalho realizadas fora do horário normal. Logo, a maioria de nós tem acumuladas todos os meses várias horas de compensação para gozar cujo valor, se fosse pago a cerca de 13€ (valor/hora médio), daria certamente para comprar muitos bilhetes de comboio.

Antes de me debruçar sobre o motivo que me levou a escrever este texto, tenho a fazer uma nota pessoal, uma vez que usarei o meu próprio caso como exemplo no que discorrerei a seguir. Assim, sou um inspector, e exerço funções numa secção dita “operacional”, onde se realizam somente prevenções e, se fosse a seguir o regime de compensação temporal por trabalho realizado para lá do horário normal, e só no referente ao mês de Novembro, teria direito a 12 dias completos, dos quais terei gozado em parcas horas de sono o equivalente a 4 dias úteis, cenário semelhante ao da maioria dos colegas da minha e de outras secções.

Indo ao que interessa, e tendo já sido referido no blogue (e bem) que a utilização do LT nos transportes públicos é um direito (às vezes um transtorno), importa analisar várias situações que também por aqui foram elencadas ao longo do tempo por alguém muito atento e vigilante, e determinar se estas são um direito, uma regalia ou um abuso, ou lá o que raio são:

Situação 1: viaturas de serviço (esta incomoda particularmente alguns administrativos e outras pessoas vocacionadas para a gestão do tráfego rodoviário)

Confesso que, por vezes, é-me autorizada a utilização de uma viatura para ir a casa ou para ir almoçar, neste caso, nas proximidades da base. Tal não acontece por acaso. Na verdade, e por diversas vezes, fui incomodado a meio da noite e à hora de almoço pelo maníaco do meu chefe (ele também com o sono e o almoço interrompidos), sendo-me então comunicada uma situação que merecia tratamento urgente. Nesses casos, obviamente e porque não poderia ser de outra forma, acabo ou interrompo o que estou a fazer e sigo o mais rapidamente possível para o local (não raras vezes em marcha de urgência). Se não tivesse a viatura comigo, se me dissessem que isto configurava um abuso e não uma necessidade do próprio serviço, iria ocorrer a seguinte sucessão de eventos: ao sair da Polícia, não estaria disponível de facto; utilizaria os transportes públicos; não atenderia o telemóvel ainda que me ligassem até porque ele é pessoal e pago por mim; não seria interrompido no sono nem no almoço; seria tão feliz e receberia o mesmo no final do mês.

Noutro tipo de situação que ocorre com frequência, findo um serviço, é-me facultada uma viatura para regressar a casa. Tal também tem uma justificação: não há transportes públicos àquela hora ou se os há, far-me-iam chegar a horas impensáveis. Mais uma vez, cabe à instituição o pagamento dos custos do regresso a casa dos funcionários aquando da realização de trabalho fora do horário normal, sendo até considerado tempo de serviço, e é então o facilitar de uma viatura uma ponderada medida de gestão com vista ao exercício de um direito.

Parece-me assim que o uso de carros da Polícia está directamente relacionado com as necessidades de serviço, não se colocando sequer esta questão quando se está escalado de prevenção. Será um abuso somente para quem, não estando disponível para trabalhar a qualquer hora, ou que não seja necessário ao serviço, faça uso de um recurso limitado.

Situação 2: ajudas de custo (mais uma vez, incomoda alguns administrativos)

É um direito de quem realiza diligências no exterior (a 5km do concelho-base) e de quem se encontra em diligências ou impedido de regressar nos horários normais para almoçar, jantar, cear ou pernoitar. Qualquer solicitação de pagamento fora deste quadro poderá configurar, mais do que um abuso, uma violação de uma norma e, portanto, deve ser evitada.

Contudo, tem sido prática corrente de algumas chefias o “esticar” de algumas dessas ajudas por forma a compensar as tais horas de trabalho suplementar e que não têm efectiva compensação temporal. Apesar de compreender a motivação, mantenho o que afirmei anteriormente, reiterando que se deve evitar o recurso a este método, sendo dele conhecedor e conivente a Direcção, que assim encontra uma forma de pagar com migalhas o trabalho extraordinário.

Situação 3: telemóvel de serviço (esta incomoda até a quem o não tem distribuído)

Para a atribuição e uso de telemóvel de serviço aplica-se o mesmo princípio que o das viaturas. Foram acusados alguns investigadores de os usar para realizar chamadas de cariz pessoal, tratando-se tal facto de um claro abuso, à partida. Contudo, o problema é que a esmagadora maioria do pessoal de investigação não tem telemóvel distribuído e, muitas vezes, é obrigado a fazer chamadas do seu próprio aparelho para resolver questões de serviço, não sendo o devido valor restituído. Além disso, como já referi, as chefias não se coíbem de ligar para o telemóvel pessoal dos inspectores, que é mantido operacional a expensas do seu próprio bolso. Pelo que se me afigura que o uso esporádico para fins pessoais não configura tão grande e inaceitável abuso, sendo sem dúvida uma regalia para quem trabalha durante o horário de expediente dentro das instalações e está contactável através da sua extensão, tratando-se neste caso a atribuição do aparelho (recurso finito, dispendioso) de um acto de duvidosa gestão.

Situação 4: Tratar de assuntos particulares em horário de expediente (não sei a quem esta incomoda, mas parece-me que a um administrativo)

Voltando atrás, é evidente que, para quem tem horas de descanso acumuladas, tem também o direito do seu usufruto assim que o pretenda, tal como está disposto em Lei. A invocação de artigos 66º e semelhantes só deverá ser feita por quem, não tendo horas “a haver”, necessite de um dia ou de uma sua fracção para resolver qualquer tipo de assuntos.

Nada mais tendo sido declarado “regalia de alguns inspectores”, tenho a convicção que o anteriormente afirmado não será alvo de grande contestação, e que a maioria dos investigadores revê-se no que foi escrito. Acrescento ainda que a atribuição de regalias para quem cumpre a mais do que lhe é exigido é uma prática corrente no mercado de trabalho, e destina-se tão-somente a manter motivados os funcionários produtivos. Veja-se como no sector privado são concedidos sem estranheza prémios de desempenho, de objectivos e até de assiduidade (aparentemente sem fundamento, visto serem inerentes às funções), tratando-se de custos que os empregadores esperam vir a compensar (até lucrar) com o aumento da produtividade, sendo estas estratégias de gestão estudadas e aplicadas há largos anos.

No caso da P.J., onde 82,5% do orçamento (99 milhões em 2011) é destinado a despesas com pessoal, torna-se evidente que a concessão de pequenos benefícios também provoca um aumento da motivação dos funcionários que assim retribuem com a sua disponibilidade e empenho permanente (relembro que vale 13€/hora). Se certas facilidades não fossem concedidas, diminuiriam os motivos para trabalhar fora de horas, de forma abnegada e quase gratuita (gratuita nalgumas vezes). E que benefícios serão esses que nos têm sido concedidos ao longo destes anos, tão exagerados e injustificáveis, que não serão atendíveis pelo observador idóneo ou pelo gestor competente?

Os investigadores da P.J. não são uma excepção ao restante mercado de trabalho quanto às motivações, sonhos e aspirações; são-no, isso sim, quando se analisam as características únicas da sua função e os reduzidos benefícios que lhes são concedidos. Estes funcionários, integrados não por acaso numa categoria especial, foram primeiramente sujeitos a um processo de selecção que de entre milhares de pessoas válidas só aproveitou uma pequeníssima parte. Depois tiveram que frequentar um curso e um estágio (que tiveram custos altíssimos para o Estado) onde lhes foram ministrados os conhecimentos e instrumentos necessários para o cumprimento das funções, sendo o seu objecto de trabalho o que a sociedade tem de pior (um notável procurador até escreveu que os polícias trabalham com a lava de um vulcão em ebulição). Estas funções não poderiam ser executadas pelo cidadão médio, e daí a visão diferente que se tem de ter deste tipo de funcionários, que apesar das dificuldades e incompreensões, e frequentemente contra tudo e contra todos, trabalham em condições difíceis, ultrapassando continuamente limites físicos e psicológicos. Querer contrariar estes factos, o da especificidade de funções e a necessidade da gestão das motivações dos investigadores, é apenas remar contra a maré e contra um tempo que é o de hoje, a que nem a crise económica - passageira como todas as crises – serve de desculpa.


3 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns pelo escelente post.
Vou guardar pois é um tratado.
Diria em conclusão, se me é permitido, que as diferenças dos direitos e regalias para os abusos decorre somente do ponto de vista ético e moral. Quem tem, tudo bem! quem não tem e usa mal, abusa ou prevarica, sujeita-se à crítica, à sansão disciplinar e/ou penal.

Um Abraço do Sul

Anónimo disse...

Parabéns ao autor do artigo.
A viciosa tendência para tomar a parte pelo todo e para confundir as carreiras administrativas(?) com a carreira de investigação, já é apanágio dos comentadores maldizentes que por aqui vão aparecendo. Tenho a certeza que não se farão esperar.
Há situações de abuso na PJ? SIM.
São esses abusos a regra? NÃO.
São esses abusos exclusivos da investigação? CLARAMENTE QUE NÃO.
Diria até que são transversais a todas as categorias, desde os funcionários não qualificados até ao DN.

Abordam-se aqui duas questões que gostaria de ver discutidas - telemóveis e direito aos transportes públicos.
Pelo menos no meu departamento, mesmo as brigadas que, pelo crime que investigam têm que fazer muito trabalho no exterior e muitas das vezes com várias equipas no terreno, apenas dispõem de um telemóvel, o que leva a que os inspectores utilizem os pessoais, que pagam do seu próprio bolso.
Em contra partida, as chefias administrativas, as funcionárias do secretariado e do gabinete de relações públicas, dispõem de telemóvel de serviço, presumindo-se que, não sendo para efectuar chamadas fora do horário de expediente, já que por regra o serviço termina às 17H30, com pontualidade britânica, seja apenas para que, pontualmente possam ser contactadas, deduzindo-se assim que os telemóveis pessoais não podem ser utilizados para o efeito.
Poderíamos também falar dos modelos de telemóveis distribuídos aos chefes administrativos, mas isso fica para outros comentários.

Quanto ao LT, não estou completamente de acordo. O artº 84º, nº 1, da LOPJ 275-A, que não foi revogado pela actual LO, concede aos investigadores criminais o direito de utilização de todos os meios de transporte colectivos a nível nacional, sendo omisso quanto à utilização do LT como título de transporte. Não parecem restar dúvidas que esta regra não restringe o direito apenas às missões de serviço, como aliás o faz no nº 2, relativamente aos restantes funcionários. O problema é que um despacho conjunto, determinou que o LT deixou de servir como título de transporte, devendo o funcionário munir-se de título de transporte válido, sendo que disso foram notificadas todas as transportadoras.
Ou seja, não retirando aquele direito, determina que as transportadoras têm direito a ser ressarcidas.
Então, mantendo-se o direito, quem paga? A POLÍCIA. Coisa que esta direcção, assobiando para o lado não quer assumir. Limitaram-se assim a garantir o transporte casa-trabalho e vice-versa, razão porque nos forneceram passes ou andantes e, deliberadamente, alegam com o artº 17º da LOPJ 37/2008, que diz respeito ao LT e ao livre acesso, e não à utilização dos meios de transporte, para concluírem que os meios de transporte apenas podem ser usados em missão de serviço. E desta forma têm sido recusados reembolsos de títulos de transporte, o que já deu origem a processos patrocinados pela ASFIC/PJ.
O que me choca é que ainda há quem considere que o nº1 é um dos nossos.

O Tripeiro

Anónimo disse...

"Estes funcionários, integrados não por acaso numa categoria especial, foram primeiramente sujeitos a um processo de selecção que de entre milhares de pessoas válidas só aproveitou uma pequeníssima parte." Quem fez o juízo de valores, critérios dúbios, todos sabemos a excelência dos que cá moram... eu sou afilhado de Deus mas Deus Não existe!

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