Carlos Farinha. Por causa da crise, as perícias documentais aumentaram 60%
Por Rosa Ramos, publicado em 3 Jul 2012 - 03:10 | Actualizado há 4 horas 37 minutos
O director do Laboratório de Polícia Científica diz que há cada vez mais pessoas a negar contratos que assinaram
Chegou ao Laboratório de Polícia Científica (LPC) da Polícia Judiciária (PJ) há três anos e, desde então, já conseguiu reduzir a demora das perícias em 35%. Sem precisar de aumentar recursos. Carlos Farinha diz que o segredo é “impor metas” e rentabilizar meios e equipas. A história do “senhor CSI” na polícia portuguesa começou há mais de 30 anos com um simples anúncio de jornal. Era professor de educação física e treinador de basquetebol quando foi seleccionado para perito de criminalística: acompanhava os investigadores às cenas de crime para recolher impressões digitais e tirar fotografias. Logo no primeiro dia de trabalho mandaram-no para uma casa assaltada nas avenidas novas, em Lisboa. “Lembro-me de ter sentido uma ansiedade enorme... precisava muito de encontrar uma solução rápida para aquilo”, conta. Mas, com o passar dos anos, o director do LPC diz que aprendeu que na polícia todas as coisas “levam o seu tempo”. Dias depois, foi chamado ao primeiro homicídio, em Tomar: uma rapariga grávida tinha sido assassinada pelo namorado, militar. Apesar da inexperiência, Carlos Farinha garante que não se atrapalhou no local do crime: “Nada daquilo me fez confusão, porque não dei margem para isso. A tentativa de fazer todos os procedimentos correctamente tornou aquela imagem horrível num cenário de trabalho e não num espaço de apreciação livre”, diz. O director do LPC é assim: obstinado. Nos últimos 30 anos, as ciências forenses conheceram um avanço enorme. Hoje, numa cena de crime, sabe-se cada vez mais a partir de cada vez menos. O grande desafio, garante, é lidar com a “massificação do recurso às perícias”, garantindo a celeridade, mas sem pôr em causa a qualidade da resposta.
O que mudou nos últimos 30 anos na investigação criminal e nas ciências forenses?
Houve uma evolução gigante na investigação criminal, que deixou de ser uma actividade individual e passou a ser um trabalho de equipa. Hoje há uma partilha de informação muito maior. No que diz respeito à ciência forense, passou a ser uma actividade de apoio acrescido. Há um maior conhecimento científico que se pode colocar ao serviço da investigação. Evoluiu-se em termos de procedimentos, de princípios e de regras metodológicas. Repare que a descoberta do ADN, enquanto elemento da ciência forense, é da década de 1980. Ou seja, de há meia dúzia de dias.
Numa cena de crime sabe-se cada vez mais com cada vez menos?
Os pormenores são, de facto, cada vez mais importantes: podem dar muito mais informação relevante para a investigação. Há todo um saber científico acrescido e uma capacidade de resposta muito maior. E existem princípios que agora são claros e que há uns anos não eram tidos em conta.
Como por exemplo?
Desde logo, a problemática das contaminações. Ou seja, se nós hoje conseguimos recolher vestígios cada vez mais ínfimos, temos de ter consciência de que todos nós produzimos, também, vestígios de forma não intencional. Por isso, são precisos cuidados adicionais na sua recolha e acondicionamento. Por outro lado, a questão da custódia da prova é mandatória. Existe, hoje, uma definição rigorosa dos circuitos dos vestígios – desde o momento em que são assinalados até serem analisados. E isso é feito de uma maneira que possa ser, depois, demonstrada e contraditada, por exemplo, em tribunal. Quando nos é pedido por um juiz para explicarmos como é que chegámos à conclusão que determinado ADN é de determinada pessoa, nós temos de ser capazes de explicar todo o circuito que nos levou a essa conclusão. Isto para dizer que a ciência forense não são procedimentos inventados: hoje, cumprem regras definidas e são susceptíveis de ser escrutinados pelo sistema de justiça. Há uns anos não víamos isto tão expresso. Outra mudança que se verificou é que a preservação do local do crime é, hoje, absolutamente essencial.
As outras polícias estão sensibilizadas para essa necessidade?
Estão muito mais sensibilizadas, embora ainda exista margem para optimização. Quem diz as polícias, diz os first responders – como os bombeiros ou a protecção civil. Todos esses agentes sabem que da qualidade da sua intervenção inicial pode depender a qualidade final da investigação. E mesmo a própria sociedade respeita muito mais as cenas de crime, actualmente. Eu ainda sou do tempo em que, quando se vedava um determinado local, as pessoas não respeitavam minimamente. Este é o lado bom das séries “CSI”.
Que também tem efeitos nocivos?
Claro. Penso que tem, sobretudo, dois efeitos negativos. Por um lado, transmitem a ideia de um imediatismo das coisas que não é real. Na polícia, há um tempo para a recolha de vestígios, para a sua análise, para a emissão de conclusões. Até os próprios equipamentos precisam do seu tempo de actuação. Por outro lado, o “CSI” passa a imagem de que tudo é possível ou garantido. Quando na verdade, a existência de um cabelo, por exemplo, não garante que seja possível recolher ADN. O “CSI” dá-nos a imagem absoluta das potencialidades, sem transmitir a ideia das limitações e isto pode levar a uma exigência injusta e impossível sobre o trabalho da polícia científica.
Faz sentido que as outras polícias também tenham investigação criminal? Não poderia existir só um organismo?
Isso é uma questão que me transcende enquanto director do LPC. Temos este modelo e é com ele que temos de trabalhar. De vez em quando fala-se na possibilidade de uma só polícia, mas... onde é que isso existe? Há polícias especiais em todos os países. O modelo é sempre discutível, mas não é propriamente isso o que mais me preocupa em termos concretos. O importante é garantir que quando o cidadão tem um problema, tenha uma porta próxima para ir bater e que depois o sistema lhe organize, internamente, a melhor resposta.
Ainda assim, não poderia existir uma única entidade para a ciência forense?
Não me parece que isso exista em lado nenhum.
Mas traria inconvenientes?
Não. O único inconveniente teria a ver com a própria realidade. Teria de obrigar a uma fusão do Instituto de Medicina Legal, do LPC, das estruturas técnicas da PSP e GNR, do SEF. E depois, eu ainda pergunto: então e o Instituto Ricardo Jorge, por exemplo, que faz um excelente trabalho em algumas áreas e a quem recorremos com frequência? O que as várias estruturas precisam é de saber funcionar umas com as outras.
E essa complementaridade existe?
Inequivocamente que sim.
Não há duplicação de competências e falhas na partilha de informação?
Actualmente não. Há competências de recolha que estão distribuídas por várias entidades – PJ, PSP, GNR –, mas que têm as suas áreas investigatórias definidas. E, veja, que há, por exemplo, algumas especialidades que são comuns ao LPC e à Medicina Legal (ML), mas que no fundo são diferentes. No caso da toxicologia, nós analisamos a droga, ou a substância susceptível de ser droga, que é apreendida, enquanto eles analisam essencialmente as consequências e a metabolização, no corpo humano, dessa substância. É um trabalho complementar. Na biologia há uma proximidade maior, mas compreende-se. Nós analisamos locais e coisas, eles analisam pessoas. Na questão mais recente da base de perfis de ADN, eles têm a gestão e garantem determinados critérios de inserção, enquanto que nós podemos determinar os perfis a inserir a partir de amostras-referência no local de um crime, quando o tribunal assim o ordena.
A base de perfis de ADN que tem estado praticamente vazia...
É uma realidade complexa que, se calhar, tem menos perfis do que o que seria desejável. Houve uma grande preocupação em encontrar uma solução legal que acautelasse direitos, liberdades e garantias. Admito que poderíamos ter sido mais felizes na solução escolhida.
Agora é preciso corrigir o modelo?
Quem tem poder para corrigir é o legislador. Julgo que pode ser possível aumentar os critérios para a inserção de perfis. Por exemplo, inserindo não apenas pessoas condenadas a penas superiores a três anos e só na fase do trânsito em julgado da sentença. Talvez se pudesse fazer também noutras fases do processo. E acho que o tempo de permanência dos perfis na base também poderia ser alargado. A lei acentuou, como disse, os direitos, liberdades e garantias, mas a eficácia também é uma forma de acautelar esses direitos. Porque as bases de dados servem para culpar, mas também para inocentar. Mesmo assim, penso que esta experiência tem sido positiva para se perceber o que se pode melhorar.
Conseguiu reduzir a pendência das perícias, num espaço de três anos, em 35%. Como é que isso foi possível?
Desde logo, com uma grande capacidade dos profissionais que temos. E houve uma tentativa de rentabilizar os recursos existentes através de pequenas coisas. Por exemplo, se tivermos mais funcionários do que equipamentos, isso significa que nem todos os funcionários os podem estar a usar ao mesmo tempo. Então o que se fez foi criar dois turnos: agora há peritos que entram às 8h e outros que só saem às 20h. Isto permite um tempo maior de utilização dos equipamentos e, consequentemente, maior capacidade de resposta. Por outro lado, se existir uma elevada pendência surgem muitos ofícios por parte das entidades solicitantes a insistir na resposta. Baixando a pendência, há menos insistências e gasta-se menos tempo a responder aos ofícios. Coisas simples como estas permitiram reduzir a pendência dos exames em 35%, apesar de os pedidos terem aumentado 45%.
Há uma maior procura das ciências forenses?
Existe, claramente, uma tendência para a massificação das ciências forenses. O que não é negativo: a boa justiça, a boa investigação procura fundar-se em prova real e em elementos objectivos e científicos.
Por causa da ciência forense, é hoje mais difícil cometer o crime perfeito?
Eu não ia por aí, porque se o crime for perfeito nós não chegamos a ter conhecimento dele [risos].
A verdade é que o LPC continua a ter uma grande pendência na especialidade da escrita manual. Porquê?
É a especialidade em que temos, de facto, maiores dificuldades. Quando aumenta a crise, nós achamos que aumenta apenas a criminalidade violenta, mas a verdade é que também aumenta a criminalidade documental. Perante as dificuldades económicas, muitas pessoas dizem que não assinaram determinados contratos para não assumirem responsabilidades. Desde 2009, aumentaram muito as solicitações nesta área.
Em quanto?
Cerca de 60%. E não conseguimos aumentar, paralelamente, a capacidade de resposta. Temos 16 peritos a trabalhar neste domínio e alguns elementos em formação. Mesmo assim, estou convencido de que no final deste ano toda a pendência do LPC estará nos padrões internacionais. Ou seja, abaixo dos 90 dias. Aliás, neste momento já atingimos esse patamar em quase todas as especialidades.
Que outras faltam, além da escrita manual?
Alguns segmentos da física, por força da limitação de equipamento, mas isso estará resolvido até ao final do ano. E a escrita manual queremos resolver até meados do ano que vem. Até porque a maior parte dos exames que temos pendentes já são de 2012.
Apesar da diminuição da pendência, continua a existir pressão para uma resposta ainda maior?
O tempo, hoje, está mais curto do que há uns anos.
E isso acontece porquê?
Talvez porque a nossa sociedade esteja muito mais imediata e o sistema de justiça não foge à regra: as exigências de celeridade são maiores. A pressão e o grau de insistência são inequivocamente superiores.
Mesmo por parte da própria tutela?
Naturalmente, porque o serviço público que a tutela está obrigada a organizar tem de ir ao encontro das expectativas da sociedade.
Haverá um desconhecimento do trabalho do LPC por parte dos magistrados e da tutela?
O que eu acho é que a pressão sobre a celeridade não pode pôr em causa a qualidade da resposta. Não pode haver respostas precipitadas ou cortes nas etapas do desenvolvimento de um processo. Todas as coisas têm um tempo. Mas pode-se cortar em algumas burocracias que ainda vão existindo – por exemplo, na relação entre a entidade solicitante da perícia e a respondente. E há várias formas de agilizar processos. Tenho procurado, por exemplo, sensibilizar magistrados por via informal. Para que sejam implicados na velocidade da resposta e nos possamos ajudar mutuamente, tornando o circuito da prova mais leve.
O circuito é demasiado pesado?
Por vezes sim. Dou-lhe um exemplo: tenho funcionários a fazer recolhas de impressões digitais, diariamente, no Campus da Justiça. E eu tenho insistido – e nisso a Dra. Maria José Morgado tem dado um excelente apoio – para que quando os magistrados precisem de mandar um documento aqui para a sede não o façam por correio! Podem mandá-lo por um funcionário do LPC. Isto pode parecer uma coisa simples, mas é nisto que muitas vezes falhamos. Teorizamos sobre a morosidade, queixamo-nos que não há meios, mas não nos perguntamos como é que, com os meios existentes, podemos fazer mais e melhor.
O LPC passou a integrar, em Outubro, a Academia Ibero-americana de Criminalística e Estudos Forenses (AICEF). A cooperação internacional é um imperativo?
A questão internacional é importante. Primeiro porque há cada vez mais estruturas de partilha e de apoio. O desenvolvimento científico vai sendo posto em comum. Além disso, estas estruturas de trabalho são importantes pela exigência de sistemas de acreditação e qualidade. Agora, todos os anos, somos submetidos a testes de controlo externo nas várias especialidades. Por outro lado, também é preciso harmonizar procedimentos porque o crime é uma realidade cada vez mais transfronteiriça.
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