AMOS CANIÇO, COORD. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
"Criminalidade não justifica aumentar quadros na PJ"
por Valentina Marcelino e Licínio Lima
Ramos CaniçoFotografia © João Girão/Global Imagens
Uma
referência da Polícia Judiciária, Ramos Caniço deixa a instituição depois de 32
anos de serviço contra o crime. Na sua primeira grande entrevista após a
aposentação, o antigo coordenador afirma que neste momento os meios da PJ são
suficientes para responder à evolução da criminalidade.
O que há
de diferente entre a PJ de hoje e a PJ onde entrou há 32 anos?
Quando
cheguei à PJ encontrei uma polícia um bocado individualista baseada nas
estrelas. Isto é, tínhamos aqueles investigadores que se distinguiam pela sua
intuição, no âmbito de uma investigação criminal própria do século XX e,
sobretudo, da primeira metade do século, baseada na rua, na recolha de
informação proveniente dos processos. Depois era o 'dedinho' do agente que
fazia a diferença de investigação para investigação.
Passados
32 anos, já não há as estrelas dos anos 80, mas deixei uma polícia científica,
uma polícia técnica, que foi evoluindo e estruturando no sentido de aproveitar
as novas tecnologias.
Mas a PJ
perdeu a rua...
A rua não
se perdeu. A rua pode ter sido transferida de instituição para instituição. Com
a nova lei orgânica de 2000 , a PJ começou a especializar-se e dedicar-se à
criminalidade mais complexa, à criminalidade transnacional, internacional -
terrorismo, corrupção, tráfico internacional de estupefacientes e por aí fora.
Ou seja, as burlas, os abusos de confiança, assaltos, os furtos, passaram a ser
investigados pela PSP e pela GNR indistintamente, dependendo apenas da área
geográfica.Mas, mesmo a informação, da rua, daqueles processos que deixaram de
ser investigados pela PJ, não se perdeu. Só perco a colheita direta. Basta que a
informação flua entre os órgãos de polícia criminal. O que já acontece, mas
ainda não de forma automática.
Está a falar
de um mundo irreal. As polícias não partilham informação... Ainda no verão
aconteceu um exemplo, que poderia ter tido consequências trágicas, em Aljezur,
no qual a PJ e a Marinha fizeram uma operação na área da GNR e não avisaram...
Mas isso
terá sido uma questão de coordenação operacional. Tinha que ter havido um
telefonema de alguém para outrem a dizer 'olha eu vou entrar na sua zona, no
dia a ou b, ou entre as horas a ou b, atenção se vires alguma coisa estranha'.
Isto é que não terá sido feito. Quanto à partilha de informação entre as
polícias, ela acontece. O que não partilham é informação online, automatizada.
São
frequentes os casos da PSP e da GNR terem a tentação de extravasar a sua área
de competência, por exemplo na investigação de raptos...
Mas a culpa
não é da PSP nem da GNR. Ninguém investiga nada que não for deferido pelo
Ministério Público (MP). O que acontece muitas vezes é que o MP decide
investigar ele determinado crime e depois, como temos visto em alguns casos de
corrupção, aparece gente da PSP, GNR, peritos tributários metidos numa equipa
que está a investigar. Mas na verdade eles estão é auxiliar o MP. Ou seja, não
há um deferimento formal de competência de investigação na PSP ou na GNR. São o
apoio em campo.
Mas tem
havido o argumento, como aconteceu na investigação dos ATM, que a PJ não tem
capacidade para responder..
Há muita
coisa que se diz que não é verdade. Se olharmos para o tempo de investigação de
um inquérito nos anos 90 e o que demora hoje, hoje demora menos. Seja qual for
o tipo de inquérito. Há inquéritos muito complexos, como os da criminalidade
económica. Mas se olharmos hoje para as estatísticas, os inspetores da PJ têm
hoje menos processos distribuídos do que no final anos 90, devido à Lei
Organização de Investigação Criminal. Não podemos é deixar de pensar na
diferença de inspetor/hora de trabalho que leva um processo de corrupção ou um
assalto a uma ourivesaria. Há, por outro lado, determinados tipo de
investigação que exigem uma especialização do inspetor em termos de recolha de
prova - como a criminalidade económica - que as outras polícias, do meu ponto
de vista, não estão minimamente preparadas para o fazer.
Os
magistrados do Ministério Público (MP) estão preparados para investigar?
Nunca
estiveram. Não é numa visita que se faz à PJ numa semana que os magistrados
ficam a conhecer os métodos de investigação criminal. Mas também é verdade que
há magistrados e magistrados e há alguns que têm neste momento tanta
competência para investigar como um inspetor da PJ.
A PJ é cada
vez mais um braço armado do MP?
Eu diria o
contrário. Como demonstra a 'Operação Furacão' e outras, cada vez menos o braço
armado do MP é a PJ.
E isso
deve-se a quê?
É que a PJ
não costuma abdicar da sua independência na questão da competência técnica e
autonomia tática. Fazer isso seria abdicar de cerca de 70% da eficácia da
investigação. Ninguém nega ao MP que seja o gestor da investigação, o titular,
mas o que a PJ diz é o seguinte: ou o MP quer investigar ele próprio e não
precisa de ninguém muito especializado ou defere a competência da PJ e aí
compete à hierarquia da PJ gerir a investigação e apresentar os resultados. Ou
então o MP investiga e diz à GNR, PSP ou autoridade tributária o que querem que
eles façam, diligência a diligência. E é isto que a PJ tem dificuldade em
aceitar, que lhe digam o que fazer.
Mas cada vez
há mais casos de delegação de competências na GNR ou na PSP de crimes de
competência da PJ, com o argumento que a PJ não tem capacidade... A falta de
quadros na PJ está a levá-la a perder terreno na investigação criminal?
A PJ tem
meios e pessoas para isso. Os quadros da PJ não estão a 100%. Nunca estiveram.
Estarão mais ou menos a metade. Nestes últimos 32 anos, que me lembre, houve
sempre vagas na PJ.
Mas nesta
questão do MP delegar ou não, não me parece que tenha a ver com a capacidade
das polícias. O que me parece que tem a ver é com a necessidade sentida por
alguns magistrados de serem eles próprios a fazeres as coisas. Mas eu aí acho
que havia um exercício que devia ser feito: deviam ser averiguados nos casos
investigados pelo MP e nos pela PJ quem tem mais condenações.
Mas o quadro
da PJ, como já disse, está a 50%....
A Direção
Nacional (DN) da PJ neste momento só tem dois elementos. É a mais reduzida
direção de sempre. Mas se estes dois diretores entendem que conseguem, com
algum sacrifício, assumir aquela responsabilidade, essa é uma posição
absolutamente inatacável. Porque no estado de constrangimento orçamental que
está a PJ se se consegue apresentar resultados com uma direção reduzida é um
argumento imbatível nesta altura.
Claro que
isso provocará um enorme desgaste físico e psicológico...
E os
inspetores que estão no terreno, não terão um ainda maior desgaste?
Os
inspetores têm os seus diretores e se esses diretores conseguirem proporcionar
ao diretor nacional e ao diretor nacional adjunto resultados...
A PJ está
bem então?
A PJ não
está bem, mas também não está a ponto de cair. A PJ com o DN que é oriundo da
casa, conhece bem o funcionamento de tudo e os seus colegas. Tem condições, com
o seu adjunto, de funcionar bem. Não é o ideal. Mas a PJ funciona. Quanto aos
quadros, e eu tenho muita pena de dizer isto, mas temos de ver as coisas de um
ponto de vista de gestão.
Eu preciso
de quadros numa polícia de acordo com o volume de trabalho dessa polícia. Se eu
tenho um campo de investigação mais reduzido que há 15 anos eu precisarei do
mesmo quadro de pessoal que tinha nessa altura? Por outro lado, coloca-se outra
questão: a evolução da criminalidade foi tão grande nestes últimos anos no
sentido que justifique eu ter de aumentar os meus quadros. Olhamos para essa
evolução e isso não se verificou. A evolução da criminalidade, como a conheço
até agora, não justifica que tenhamos de aumentar os quadros da polícia.
O sindicato
da PJ (ASFIC-Associação Sindical dos Funcionários da Investigação Criminal) tem
reivindicado o contrário...
O que tem
que se ver é se esse não preenchimento do quadro colide com a qualidade da
investigação e que se alcancem resultados na investigação. Até agora viu-se que
não.
Porque há
sempre reações tão negativas na PJ quando se fala numa fusão das polícias?
É uma
questão de quintas.
Mas qual é o
receio? Medo de ser absorvida? Porque não o contrário? Pense numa direção de
investigação criminal numa Polícia Nacional, que absorve os quase 4000
investigadores da GNR e da PSP, como sugeria uma proposta do PSD, não seria
mais eficaz?
Não vejo
porque é que a PJ há-de ser fundida com outras polícias. Do ponto de vista da
eficácia a ideia que tenho é que a criação de PN noutros países não vieram
trazer melhorias do ponto de vista da eficácia.
Mas no caso
português qual seriam as desvantagens?
A
desvantagem é só uma. A PJ é um órgão auxiliar da administração da justiça que
as outras não são. São polícias de segurança pública. Por isso a PJ é
considerado um corpo superior de polícia. Sendo assim tem necessariamente de
estar no Ministério da Justiça. Por outro lado, a PJ não trata questões de
trânsito, nem de policiamento, e nunca o iria fazer. Faz só investigação
criminal e isso é propriedade exclusiva do MP em Portugal, que é MJ. Não faz,
por isso, nenhum sentido, tirar a PJ do MJ. Porque se eu transformar a PJ numa
direção de uma outra polícia qualquer, eu estou a transpor do MJ para o MAI um
órgão que é um auxiliar da administração da justiça, que trabalha
exclusivamente com o MP e com o MJ. Não tem nada a ver com o MAI. Nem do ponto
de vista orgânico faz sentido.
E mais, a
investigação criminal nas outras polícias nem é o seu objetivo principal. Na PJ
é o objetivo exclusivo.
A PJ não
fica isolada com esta atitude? São elitistas?
A PJ tem
diferenças das outras policias. Não entra ninguém que não seja licenciado. A PJ
tem sistemas de formação d e investigação criminal que, provavelmente, são
diferentes. A PJ tem a base nacional das impressões digitais, tem o laboratório
de policia científica, está a formar as equipas de local de crime. Tem uma
série de valências que as outras polícias não têm.
Os
magistrados estão a desaparecer da PJ?
Os
magistrados na PJ faziam sentido logo a seguir ao decreto-lei 35 042, de 1945
(que requalifica a PJ), na tradição dos anteriores serviços de investigação
criminal, quando os elementos da PJ tinham a 4ª classe e o 5º ano. Hoje só tem
gente licenciada, portanto tenho um estatuto cultural ao nível dos magistrados.
Se houvesse
mais magistrados nas unidades nacionais o diálogo com o MP não estaria facilitado?
Mas já
tivemos magistrados, como diretores nacionais adjuntos, praticamente em todas
as unidades nacionais e, que eu me recorde, das situações de maior tensão entre
a PJ e o MP, foi nesse altura. Recordo, por exemplo, o início da década de 90.
Mas melhor que eu o Dr. Marques Vidal pode falar disso. Ele tem uma memória
extraordinária.
Por outro
lado, a verdade é que na ultima década o único diretor nacional que aguentou um
mandato inteiro foi o atual diretor de carreira. Mais nenhum conseguiu.
A atual
estrutura orgânica da PJ está adaptada às organizações criminosas, cada vez
mais frequentes, que operam em vários tipos de crime?
Só temos
três grandes tipos de crime: contra a propriedade e os económicos e temos uma
unidade nacional vocacionada para isso; a criminalidade transnacional de
trafico de estupefacientes, e também temos uma unidade vocacionada; depois o
terrorismo e os crimes contra as pessoas, cuja criminalidade organizada tem os
raptos, sequestros e homicídios. Tirando os homicídios, todos os outros caem
numa unidade nacional que é a Unidade Nacional de Contra-Terrorismo (UNCT), que
do meu ponto de vista se chamava muito melhor, como antes, Direção Central de
Combate ao Banditismo, que é a essência da sua existência e não propriamente o
terrorismo, que acabou com a FP 25. Nunca mais houve nada de terrorismo. E
mesmo o terrorismo das FP 25... enfim... à portuguesa.
Mas há
organizações que se dedicam a todo este tipo de crimes. Não faria sentido uma
abordagem de investigação às organizações propriamente ditas, com gente de
todas as unidades relacionadas, em vez de investigar o crime em si?
Nessas
alturas a informação é cedida por todos. Na investigação também muitas vezes
vão pessoas das diversas unidades coordenadas pelos diretores.
3 comentários:
Então digam lá quais são os erros factuais da entrevista?
Bemm desde logo o facto de RC (Ramos Caniço) ser uma referência na PJ, até poderá ser uma referência na CP ou outras entidades onde esteve muito tempo,mas na PJ não é certamente...
Depois repare-se na bipolaridade:" A PJ não está bem, mas também não está a ponto de cair. A PJ com o DN que é oriundo da casa, conhece bem o funcionamento de tudo e os seus colegas. Tem condições, com o seu adjunto, de funcionar bem. Não é o ideal." ou seja tudo e o seu contrário........
Esta entrevista é qualquer coisa de extraordinário.........
De facto é mesmo de quem andou pelos corredores a ouvir estórias... até parece alucinado... "bipolar" está bem aplicado.
Veja-se o último período:
"Na investigação também muitas vezes vão pessoas das diversas unidades coordenadas pelos diretores." O que raio é isto? a investigação do caso Madie?
E a coordenação?... aquela do telefonema de a para b.
Quanto aos quadros e à evolução da criminalidade. Bom, esta é brutal.
Ele só sabe e quer saber do que é participado.
Não sabe nem quer saber das cifras negras e de tudo o que fica por fazer em termos de pesquisa e recolha de informação de criminalidade que está efectivamente a acontecer (que não é denunciada, mas pode ser procurada/investigada) e que não é feita porque o que interessa ao inspetor é só e só os meninos que tem nos braços.
Parece-me um caso de senilidade e como tal mais valia ter estado calado.
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