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terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Artigos a ler com atenção - ou a razão por que estamos assim

A reforma do sistema legal português
Por Jan Dalhuisen, publicado em 14 Fev 2012 -

Os dois problemas mais graves que Portugal enfrenta são a falta de uma sociedade aberta e o estado do seu sistema legal


Os problemas que afectam Portugal e outros países ocidentais têm, essencialmente, origem em sistemas insustentáveis de previdência social. No entanto, os dois problemas mais graves que Portugal enfrenta são a falta de uma sociedade aberta e o estado do seu sistema legal. No passado recente, o FMI foi forçado a intervir em Portugal por três vezes, desta última em parceria com a UE, mostrando a incapacidade, ou a falta de vontade, de Portugal de se gerir. Algo tem de mudar se Portugal quiser ser levado a sério.

À falta de um sistema legal forte, surge um sistema em que até a obtenção de direitos legais e contratuais depende de favores. Nada pode ser objectivamente reivindicado, sendo mesmo necessário adular os funcionários públicos para que cumpram a sua obrigação legal com os cidadãos. A criação das Lojas do Cidadão foi uma preciosa ajuda, mas, além disso, deveria implementar-se um sistema de gabinetes de ombudsmen, com competência para resolver, de forma imediata e sem burocracia, os litígios de baixo valor e acções administrativas, e aplicar sanções. Esta forma de justiça imediata, por grosseira que possa parecer, é a resposta. Haverá tempo para requintes mais tarde, se necessário.

O passo seguinte seria tornar os tribunais eficientes e executar eficazmente as respectivas sentenças, em especial as relativas a cobranças de dívidas e despejos. Por desagradável que fosse, seria necessária uma autoridade policial especial, com plenos poderes e independente da polícia comum. Para mais, eu acabaria com os recursos em sede de acções civis, comerciais e laborais, excepto no caso de os próprios tribunais concederem essa opção às partes, o que deveria ser uma medida excepcional e apenas aplicável em caso de interesse público. Não existem recursos em sede de arbitragens comerciais internacionais, e os profissionais do foro consideram esta situação perfeitamente normal. Além disso, é absurdo que em Portugal haja um grau adicional de recurso para o Tribunal Constitucional. Os tribunais comuns deviam tratar destes assuntos de modo que todos os litígios fossem julgados num prazo de três a cinco anos, no máximo. Sem isso não há justiça nem “rule of law”.

Num sistema judicial assim reformado, os tribunais de primeira instância julgariam com um colectivo de três juízes e as regras de processo civil seriam reduzidas a um código de 15 páginas, no máximo. Os detalhes processuais seriam deixados ao critério dos tribunais, que, à semelhança dos árbitros, teriam o dever de decidir em prazos mais curtos. Os juízes também não deveriam ser obrigados a resumir os factos e recursos a meio dos processos, o que representa um desperdício de tempo e energia.

Relativamente aos advogados e respectiva supervisão, seriam necessários reguladores em áreas especializadas. Isto significa que na área financeira, por exemplo, os reguladores deveriam supervisionar não só os bancos e outros serviços financeiros, mas também os respectivos advogados. Teriam uma lista de sociedades de advogados e advogados autorizados. Os lesados teriam a faculdade de apresentar reclamações a estes reguladores relativamente ao comportamento dos advogados e os reguladores teriam competência para impedir que aqueles continuassem a exercer. Podiam ser atribuídas competências semelhantes a outros reguladores.

Tais medidas levariam certamente a todo o tipo de protestos, em defesa da independência dos advogados, o que, de acordo com a minha experiência, é o melhor sinal de que se acertou em cheio. E porque contestaria qualquer advogado decente esta medida se não por medo de se afundar juntamente com um cliente duvidoso? É um requisito indispensável para reabilitar os serviços financeiros neste país, o que é muito necessário e nunca se conseguirá sem uma maior responsabilização dos advogados.

A reforma do sistema legal português – parte 2
Por Jan Dalhuisen, publicado em 21 Fev 2012 - 03:00 | Actualizado há 14 horas 52 minutos

Em Portugal, o problema imediato são os interesses estabelecidos no seio da advocacia, e não a magistratura, integrada por pessoas diligentes, em geral honestas



Nas últimas semanas, identifiquei os dois problemas fundamentais em Portugal: a falta de uma sociedade aberta e o estado do seu sistema legal. O professor Cooter, meu colega em Berkeley, e o professor Schaeffer, de Hamburgo, demonstram, no seu novo livro, intitulado “Solomon’s Knot”, que um sistema legal inoperante se traduz em riqueza para alguns e pobreza para a maioria. É provável que neste contexto os advogados protejam a cleptocracia e dissimulem a corrupção. Esta situação é geralmente associada aos países em desenvolvimento, mas constitui também uma mensagem para outros países, que sem uma reforma social e legal profunda se arrastarão de crise em crise. Portugal, tendo já sido alvo de três intervenções do FMI e da UE desde 1975, não está muito longe desta situação, e sem uma reforma profunda poderá acabar por ser governado por Bruxelas. Mas é extraordinário que ainda haja tantas pessoas que não querem ver esta realidade.

Os meus comentários sobre o sistema legal português têm merecido todas as atenções na blogosfera. Alguns terão entendido mal o que eu disse. Em Portugal, o problema imediato são os interesses estabelecidos no seio da advocacia, e não a magistratura, que é, tanto quanto me é possível avaliar, integrada por pessoas diligentes, em geral honestas, e cientes dos problemas. A única questão que se põe é o motivo por que os juízes não protestam mais. O funcionamento do sistema penal constitui outro exemplo. Refiro-me especialmente à fuga de informação dos órgãos de polícia criminal para a imprensa, enquanto o suspeito permanece sem sequer saber quais as acusações que lhe são imputadas. Na altura do caso Casa Pia, até o Conselho Europeu revelou interesse pelo assunto, foram enviados funcionários e formuladas algumas propostas, mas pouco foi alterado. Parece-me que em situações tão fundamentais quanto estas os juízes não deverão permanecer em silêncio.

A semana passada referi as medidas fundamentais necessárias ao saneamento do sistema legal, que afectarão em particular o sistema processual e a supervisão dos advogados. Estas medidas são urgentes. Não me restam dúvidas de que os melhores advogados apoiarão a reforma legal necessária para que o país possa prosperar, o que permitirá rapidamente separar o trigo do joio. Prestarão igualmente apoio às instituições académicas para que assumam o comando no domínio intelectual e das ideias. As melhores faculdades de Direito deverão estar à altura do desafio, revelando, no processo, que constituem as verdadeiras academias do Direito deste país. Na blogosfera, alguns comentários destacaram o facto de muitos professores se encontrarem em situações de conflito: um grande número destes docentes exerce a profissão e sente orgulho na sua capacidade de transmitir a realidade do exercício da mesma aos alunos. Isto representaria a perpetuação de um sistema desacreditado e impedi-los-ia de serem efectivos catalisadores de mudança. Seria desastroso para a reconstrução do sistema e para o futuro dos nossos estudantes, que ainda não tomaram completa consciência da situação e estão inadequadamente preparados para uma realidade que necessita de uma mudança por parte de todos. Só então haverá espaço para os mais novos.

Da mesma forma, também a posição da Ordem dos Advogados deverá ser repensada. Estou convencido que esta está ciente dos problemas reais, mas é geralmente forçada a actuar como uma espécie de sindicato, esmagada pelas queixas contra os seus membros. Também aqui deveria existir um sistema de ombudsman independente, com plenos poderes relativamente à maioria dos litígios e capacidade imediata de acção e de implementação de um sistema de pontos relativamente a sociedades de advogados e advogados prevaricadores, que seriam proibidos de exercer, durante um determinado período, caso reincidissem em transgressões. O registo de pontos deveria ser público.

Gostaria de terminar com uma breve nota pessoal. Tive o meu primeiro contacto com o direito português através do venerável professor Raul Ventura, autor do Código das Sociedades Comerciais, que muito me ensinou sobre Portugal e sobre Angola. Homem de elevados princípios, foi conselheiro de muitos, mas por nenhum se deixou ludibriar. Nunca torceu a lei em benefício próprio, desconfiava da advocacia e até dos seus colegas académicos. Não tenho qualquer dúvida de que ainda existem vários do seu calibre. Em tempos como os que agora vivemos, a liderança de homens como ele faz grande falta, não apenas pelo seu discernimento, mas pela sua figura exemplar e autoridade moral.

Professor catedrático
Professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, do King’s College de Londres e da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa)

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Lisboa, Portugal
Investigador Criminal